Autosabotagens no Culto à Deusa Negra

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A Deusa que cultuamos na Wicca é conhecida como Deusa Tríplice por seus três aspectos – Donzela, Mãe e Anciã.  Quando comparados à Lua, esses três aspectos dizem respeito a sua porção luminosa: a Lua Crescente, Cheia e Minguante, respectivamente. Porém, há um quarto aspecto da Deusa, menos conhecido, que chamamos de “Deusa Negra”, equivalente ao momento do céu onde não há Lua visível. Às vezes a Deusa Negra é identificada como uma especialização da Anciã, mas ao olharmos para as muitas mitologias pré-cristãs onde a Deusa se revelou, encontraremos Donzelas Negras e Mães Negras também. Isso nos faz entender que a Deusa Negra abarca a totalidade da própria Deusa em seus três aspectos.

Mas quem é a Deusa Negra? Ela é a Senhora da Sombra Coletiva dos povos e da própria humanidade. É a Deusa que trata de temas que nos são desagradáveis, que preferimos evitar porque nos causam dor e sofrimento: Ela é a senhora da morte, do adoecimento e de todas as pragas, da putrefação, da sexualidade, da violência e agressividade, da vingança, ódio, inveja, ciúme. É a Senhora dos Fantasmas, da Noite Escura da Alma, do luto. A Deusa Negra é o choro da mãe que assiste a morte de um filho. Conhecemos sua face quando vemos nossos entes queridos serem tomados por doenças graves, com seus corpos deformados e sofrerem até a morte. É a Deusa que vive em nossos traumas mais profundos, em nosso desespero. Sua voz se faz ouvir em nossos choros soluçantes, quando acreditamos não haver mais esperança, quando a dor em nosso peito é maior que qualquer outra coisa.  Ela é o lampejo de libertação que brilha nos olhos de um suicida antes de seu ato final. Ela é cada criança que morre de fome. Você já se encontrou com a Deusa Negra? Ela nunca deixa dúvidas de sua presença.

Desse modo, chamamos pelo título de “Deusas Negras” todas aquelas deusas cuja mitologia central fala de um desses aspectos. São exemplos Deusas Negras largamente conhecidas hoje dia A Morrighan, Cailleach, Hécate, Lilith, Kali, Ceridwen. É claro, todas as divindades possuem um aspecto sombrio que nos leva a conhecer a Deusa Negra, mas aqui falamos especificamente de divindades que ligam-se de forma maior a esses temas.

Já deu para perceber que Deusas Negras não são divindades que trazem aspectos muito fáceis de lidar, né? Mas as Deusas Negras são também fonte de muito amor, pois elas também são as Confortadoras – nos ensinam a compreender esses elementos como parte do Corpo da Deusa, que é a própria natureza, como elementos genuinamente sagrados para além de nossas impressões de bem ou mal. Mas isso não torna os encontros que temos em nossas vidas com a Deusa Negra mais fáceis ou menos dolorosos.

O culto a Deusa Negra é um culto de integração, pois nos leva ao reconhecimento de nossas próprias parcelas sombrias. Ele é fundamental ao nosso trabalho de autoconhecimento, pois além de nos revelar aspectos desagradáveis de nós mesmos, nos proporciona cura profunda. É por isso que alguns dizem que a Wicca é um trabalho de lapidação pessoal para o encontro com a Alma – ele nos conduz ao nosso verdadeiro Self, mas esse é um caminho doloroso, que dá muito trabalho e que nos faz pensar em desistir algumas vezes. Eu diria que um dos principais elementos que distinguem o sacerdócio Wiccaniano de outras religiões pagãs é a busca pelo encontro com a Deusa Negra para que sejamos por ele transformados. Não tentamos apazigua-la e fugir Dela quando se apresenta; não criamos tabus sobre o seu culto, amedrontados pela pronúncia de seus nomes. Nós nos erguemos e a encaramos de frente, pois a Deusa Negra é a mesma Donzela que dança na primavera, a Mãe abundante que nos nutre e nos abençoa, a Anciã sábia que compartilha seus dons e sabedoria. Sem a Deusa Negra não há Iniciação. É Ela quem nos desafia, nos despe e nos conduz através dos portais iniciáticos numa experiência de morte e renascimento. É impossível encontrar a verdadeira Iniciação sem encontrar a Deusa Negra constantemente. É impossível encontrá-la constantemente sem sofrimento. Ela é a Deusa que empurra nossos falsos limites para nos lembrar que sempre podemos ser mais. Ela te faz olhar o que você não quer ver. Te faz escutar as palavras que mais machucam. Você já encontrou a Deusa Negra?

É justamente por ser aquela que nos traz as lições mais dolorosas e difíceis que precisamos tomar alguns cuidados para “vigiar” a qualidade de nossos encontros com a Deusa Negra. É muito fácil fugir, é muito fácil criar mil armadilhas e se desvencilhar do verdadeiro confronto. Esse é um dos motivos pelo qual a auto-iniciação é tão confrontada – é possível que uma pessoa solitária consiga verdadeiramente encarar a Deusa Negra de frente para aprender as suas lições? Acredito que sim, mas isso requer alguns cuidados:

Se você tem um culto regular a alguma divindade e ela apenas se apresenta a você como “Deusa Fofinha”, carinhosa, amorosa, sua melhor amiga, tem algo errado. O culto às divindades na Wicca, principalmente às chamadas Deusas Negras (que enfatizam esses aspectos sombrios), conduzirão inevitavelmente a esses encontros. Se você ainda não os teve, cabe meditar: “de que eu estou fugindo?”, “quais aspectos dessa divindade me confrontam, me trazem medo ou repulsa?”. Cabe às vezes uma “abordagem ativa” à Deusa Negra – ao invés de esperar que ela se manifeste, vá atrás dela para explorar algum tema em sua vida. Você é uma pessoa muito pacífica, anti-violência? Então talvez a agressividade e a destrutividade sejam temas que Ela irá trazer a você. Você é uma pessoa que tem medo da sexualidade? Você tem nojo de órgãos sexuais masculinos ou femininos? Talvez a Deusa Negra tenha algo a lhe ensinar sobre isso. As divindades chamadas de Deusas Negras são ótimas professoras, curadoras e regeneradoras, são também fontes de amor, mas se você nunca teve um encontro desconfortável, difícil, com suas divindades de culto, talvez seja hora de se perguntar o porquê disso. Medite com a Deusa e deixe que Ela te conduza. Mas não se engane – nossas tentativas de controlar a Deusa são sempre falhas. Por mais que fujamos, a Deusa Negra nunca deixará de se revelar em nossas vidas, de muitas maneiras. Abra os olhos e perceba como Ela atua em sua vida a todo instante.

Outra possível fuga é o extremo oposto: se seu culto é muito “trevoso”, sombrio e sangrento, sem reconhecer aspectos luminosos dessa divindade, é provável que tenha algo errado. Se você acredita que Lilith é uma vampira devoradora de homens e sedenta por sangue, se você acredita que Hécate é uma besta das encruzilhadas pronta para devorar almas despreparadas que a invocam, pode ser que tenha alguma distorção em seu culto e você também esteja fugindo de um confronto com a Deusa Negra. Se esse é o caso, podemos pensar em duas coisas diferentes: a primeira é se perguntar o porquê esse aspecto tão destrutivo te atrai tanto e toma grande parte do seu culto. É claro que pessoas diferentes se sentirão chamadas a cultuar divindades diferentes, mas ainda assim somos todos seres humanos que precisam de saúde, amor, prosperidade, alegria, prazer. A Wicca é uma religião de totalidade, expressamos também a porção luminosa da Deusa. Então porque é que somos atraídos apenas pelos aspectos mais sombrios das Divindades? O que há para temer em outros aspectos da Deusa? Outro ponto que precisamos considerar é: quando nos envolvemos em cultos exageradamente sombrios, que chocam outras pessoas, que as fazem ter medo de nós e de nossas práticas, não estamos na verdade nos apegando a sensação de controle? Criamos uma história para acreditarmos sermos íntimos da Deusa Negra, mas na verdade nunca a conhecemos verdadeiramente – temos, mais uma vez, medo do confronto.

Qual é o ponto, então? Como fugir de nossas autosabotagens no culto à Deusa Negra e consequentemente em nosso desenvolvimento sacerdotal? Um dos indicadores é moderação. Excessos podem ser indicadores que nos chamam a meditar e confrontarmo-nos. Tal qual a Roda da Fortuna do Tarot, nossa vida gira. A lição da Deusa é a lição dos ciclos – se você está por muito tempo na mesma energia, talvez seja hora de uma autoavaliação mais profunda. Um método que funciona bem para nos aproximarmos da Deusa Negra é a celebração do próprio ciclo lunar – celebramos a Donzela no período de crescimento lunar (da lua nova até a véspera da noite de lua cheia), a Deusa Mãe em nossos esbats de Plenilúnio (que dura apenas um dia), a Anciã durante todo o minguar e desaparecer da Lua, e finalmente a Deusa Negra no tempo de escuridão, antes do ciclo recomeçar. Na noite da Lua Negra, podemos nos abrir para escuta-la e deixar que Ela nos toque e nos transforme.

A Deusa Negra é a Senhora do Renascimento e dos Portais. Ela é sim a Desafiadora, Senhora dos Desconfortos, mas também é aquela que nos conduz em direção à liberdade. Ao encontrá-la, devemos ter a certeza que a luz de um novo dia surge após o período de maior escuridão. Ela, e apenas Ela, é capaz de nos tornar reais sacerdotes e sacerdotisas da Deusa, pois Ela nos afia enquanto instrumentos, nos forja, nos leva além de nossos limites. E justamente esse é seu maior desafio: você é capaz de amá-la, mesmo de frente para sua face mais terrível?

Leo Fortius Dianus

Leo é iniciado da Tradição Diânica do Brasil e tem um culto especial voltado a Afrodite. Tem 23 anos e é formado em Psicologia. Autor do blog Androtheosis, dedica parte de seu sacerdócio ao estudo e trabalho com o Sagrado Masculino sob uma perspectiva diânica, buscando a cura e integração do homem como sacerdote da Deusa.

Templo da Deusa

Cultuando a Deusa Negra

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Ao entrar em contato com a Wicca, nos deparamos com uma Deusa de três facetas associada ao ciclo lunar: enquanto a Lua cresce, projetando sua energia para o mundo, a Deusa é a Donzela que corre livre, independente, sem amarras, buscando conhecer e viver aquilo que o mundo a oferece. Quando a luz da Lua chega ao seu ápice, também chega a jornada da Donzela, que torna-se a Mãe – ela cria no mundo, nutre e sustenta, provê de si mesma para assegurar a vida; então a luz da Lua começa a minguar e mergulhar em dentro de si, assim como o faz a Deusa, que agora é a Anciã – sua jornada é para dentro, para o fundo de si mesma, rumo ao auto-conhecimento, vivendo seu mundo interno. E, este processo de mergulho em si chega ao único destino possível: a morte – finalmente, a luz da Lua desaparece, para voltar depois como Lua Nova, recomeçando o ciclo. Porém, ainda existe um quarto aspecto da Deusa, menos discutido e compreendido: a Deusa Negra.

Enquanto as três faces da Deusa se associam à luz da Lua, àquilo que pode ser visto, a Deusa Negra está ligada ao oposto – à escuridão. Em um primeiro momento, podemos ver a Deusa Negra como uma extensão da Anciã, ligada à Morte e a destruição. Ela é a Ceifeira, que tira a vida, a promessa da morte, e a certeza de que ela chegará. Enquanto a Anciã é a Deusa do Auto-Conhecimento, a Deusa Negra é a transformação que vem através dele, e o reflexo que o mostra.

Na escuridão fica aquilo que não pode ser visto, portanto, a Deusa Negra é tudo aquilo que não pode ser mostrado, o que fica velado. Ela também já foi chamada de Mãe Terrível, Tentadora, Sedutora, Fúria, Assassina. A Deusa Negra é a guerreira sedenta por sangue, a mãe que aborta, a meretriz, o último sopro, a pausa entre cada segundo, o ar que nos falta entre cada respiração. Sua morada está em todos os aspectos de nós mesmos que não nos agrada ou que a sociedade categoriza como errados. Violência, ódio, medo, fraqueza, rancor – todos os “monstros” que precisamos conter, mas que ainda assim são parte essencial de nosso ser, não desaparecem, simplesmente, mas constituem uma parte da nossa psique chamada de “Sombra”. A Deusa Negra pode ser vista em grandes momentos da nossa história: guerras, escravidão, Inquisição, nazismo… Esses são alguns exemplos onde a Sombra coletiva da sociedade se manifestou. Tudo aquilo que não podia ser visto como parte do Eu foi projetado no outro e atacado. O próprio diabo cristão é um exemplo disso. Mas a Deusa Negra vem para nos ensinar que não existe “o mal no outro”, não existe bode expiatório, não existe a quem culpar. Ela nos conscientiza de que temos aspectos agradáveis e desagradáveis, e que todos são importantes para sermos quem somos. E mais: somos responsáveis por quem somos, pois escolhemos ser quem somos.

A Deusa Negra é aquela que levanta o espelho, que não nos deixa ignorar aquilo que não queremos ver. Ela nos convida a caminhar pelas cavernas escuras de nosso ser e conhecer as criaturas que ali habitam, e através do encontro com nossa totalidade nos descobrimos os próprios Deuses, pois entendemos a total sacralidade de nosso ser. Dessa forma, integramos os aspectos sombrios de nós mesmos de forma a termos uma vida mais equilibrada e consciente, evitando manifestações terríveis da Sombra, como as descritas anteriormente. Ela é a transformação da jornada.

Mas a Deusa Negra não é só dor. Aqueles que realmente a conhecem, sabem que Ela é também a Mãe. Ela nos convida a ousar caminhar pelos caminhos tortuosos de nós mesmos e conhecer o que se esconde ali, mas em troca Ela nos oferece a cura e o poder. Ao vivenciarmos aquilo que negamos em nós mesmos somos curados de velhas feridas, dos muros que criamos dentro de nós, de dores passadas e presentes, que infligimos em nós mesmos por culpa e medo. A Deusa Negra nos permite recuperar o poder pessoal que a sociedade nos fez abdicar desde pequenos junto com a integridade de nosso ser. Com a coragem de olhar no espelho, abandonamos velhões padrões, nos transformamos, descobrimos o universo que existe dentro de nosso ser; morremos para uma velha vida e renascemos para uma vida nova, permeada de consciência – e é aí que encontramos outro aspecto da Deusa Negra – A Iniciadora, que nos conduz pelos portais.

Leo Fortius Dianus

Leo é iniciado da Tradição Diânica do Brasil e tem um culto especial voltado a Afrodite. Tem 23 anos e é formado em Psicologia. Autor do blog Androtheosis, dedica parte de seu sacerdócio ao estudo e trabalho com o Sagrado Masculino sob uma perspectiva diânica, buscando a cura e integração do homem como sacerdote da Deusa.

Templo da Deusa